Estudo sobre o acordo de cooperação internacional Brasil-Timor Leste, na Educação de Jovens e Adultos
“Diz a lenda
E eu acredito!
O sol na pontinha do mar
Abriu os olhos
E espraiou os seus raios
E traçou uma rota.
Do fundo do mar
Um crocodilo pensou buscar o seu destino
E veio por aquele rasgo de luz.
Cansado, deixou-se estirar
No tempo
E suas crostas se transformaram
Em cadeias de montanhas
Onde as pessoas nasceram
E onde as pessoas morreram.
Avô crocodilo
- diz a lenda
E eu acredito!
É Timor.”
“Avô Crocodilo”,
Xanana Gusmão
O mundo inteiro acompanhou as atrocidades ocorridas no Timor Leste. Após 24 anos sob o domínio indonésio, o Timor é hoje um país que tenta desesperadamente sobreviver. Para isso, o auxílio de vários países é essencial, mas só terá algum efeito se for ao encontro das necessidades da população e dos seus valores culturais, que estão sendo (re) construídos pouco a pouco. A Língua Portuguesa é uma das pilastras desses valores culturais, quiçá o mais importante. Incorporá-la significa antes assumir a sua identidade cultural do que um simples exercício de aquisição lingüística.
Entendendo a complexidade da implantação do português, o Programa Alfabetização Solidária entrou no cenário timorense com o objetivo de fazer parte da composição do novo contexto histórico que se desenha no país. O processo de alfabetização não é simples: enfrenta dificuldades de infraestrutura, de formação docente e de limitações quanto ao uso da língua. Além disso, penetra uma cultura diferente, com evidentes e profundas marcas, que ainda saltam aos olhos. Não é possível isolar a ação pedagógica do seu contexto e o milagre da educação acontece justamente quando a população absorve e constrói o novo, reconhecendo-se nele.
Essa ação pedagógica implica em situar-se num espaço histórico definido, o que, nesse caso, traz à tona o encontro, em desiguais condições, de diversas culturas. A pedagogia, sobretudo quando falamos em importação ou exportação de modelos pedagógicos, não pode cerrar os olhos para a questão sob a pena de doutrinar ou de ser rejeitada, fracassando em ambos os casos. Uma pedagogia libertadora considera a diversidade, mas mantém-se atenta à universalidade que faz de nós seres de diferentes culturas, porém parte de uma grande família humana.
II - UMA AÇÃO SOLIDÁRIA
“Isso é Timor”. A frase, repetida diversas vezes pelos próprios timorenses ou pelos inúmeros estrangeiros que se encontram na ilha, é a marca de um país destruído. Quando algo vai mal “isso é Timor” define a situação e também a imagem que o país tem para os estrangeiros e para os timorenses e, nesse caso, a sua auto-estima. Em Timor, todos os sentidos são estimulados e gritam, premidos entre a miséria à vista, a destruição, o calor insuportável, um cheiro agridoce e os mosquitos. Por onde quer que se ande, as marcas do violento extermínio estão presentes. É nesse pequeno território do sudoeste asiático, cuja superfície montanhosa é de 14.615 km2, que o Brasil instalou, em novembro de 2000, o Programa Alfabetização Solidária. Mas, afinal, por que o Brasil coloca a sua bandeira do outro lado do mundo? Quais as relações possíveis entre um país-continente da América do Sul e a pequena ilha espremida entre a Ásia e a Oceania?
– Um pouco de história
Em Dili, capital do Timor Leste, pode-se ver as marcas da história e concluir, sem muito esforço, a intensidade de sua violência. Há três perguntas latentes à primeira vista: “como se chegou a esse ponto?” , “por onde começar?” e, por fim, “como o mundo não evitou que isso acontecesse?” Responder a primeira questão é mais fácil e a segunda depende do que o Timor conseguiu aprender com a sua história. A terceira é um ponto incômodo para refletirmos.
Tudo começou com a chegada dos portugueses na “ilha verde e vermelha”, como a designou o poeta Alberto Osório de Castro, aproximadamente em 1512. A forma de crocodilo deu origem ao nome: avô crocodilo, em tétum, a língua nacional. A história do tétum pode oferecer pistas preciosas ao entendimento da história timorense. O embaixador brasileiro Kywal de Oliveira afirma que “o tétum tem uma história interessante, porque não é uma língua vernácula, é uma língua veicular, uma das 35 daqui. A história do tétum acaba dando a história do Timor Leste”. Ele ensina que a origem do tétum está em dois reinos. Estudioso da questão, diz que o território de domínio do tétum é um território descontínuo, ao contrário das outras línguas do Timor Leste, porque o justamente por ter sido uma língua veicular, de expansão, de domínio e, aparentemente, a língua desses dois reinos. “Eu digo aparentemente, porque os autores não estão absolutamente certos, seguros, mas teria sido a língua de dois reinos – um no norte e um no sul – um inclusive onde hoje é a Indonésia. Foram reinos que dominaram a ilha e que impuseram a sua língua ao resto da indonésia, não como uma língua do dia-a-dia, mas como língua do comércio, a língua das trocas, a língua dos viajantes. Essa história do tétum dá bem uma ideia da complexidade da sociedade timorense antes e durante o processo de colonização”.
Diferentemente das outras colônias portuguesas, o Timor já possuía uma organização social formada por 126 reinos, anterior ao seu “descobrimento”. Kywal lembra que “no Timor há uma história pré-colonial diferente da nossa, porque o Timor foi habitado há 9.000 anos e, quando os portugueses aqui chegaram, já havia estados aqui dentro, havia reinos instalados”. Entre esses reinos, destacavam-se 60, embora todos fossem relativamente autônomos e independentes. Artur Teodoro de Matos afirma que os timorenses eram “governados por um ‘liurai’, ‘rei’ ou ‘régulo’, cada um destes reinos era constituído por ‘sucos’ que, por sua vez, incluíam várias aldeias, ‘leo’, ‘lissa’ ou ‘ili’, conforme os dialetos. À frente de cada ‘suco’ estava um ‘dato’, que tinha na sua dependência os chefes das povoações, também denominados ‘datos’ ou ‘tumungões’. Tanto os ‘liurais’ como os chefes de ‘suco’ eram ‘datos’, isto é, príncipes, podendo sê-lo, embora mais raramente, algum chefe de povoação. Os ‘datos’ formavam a classe da nobreza e diziam-se senhores da terra, a quem o povo pagava um imposto (‘rai tem’) pelo seu cultivo ...”. Essa história pré-colonial não foi destruída pelos portugueses: “No fundo, a colonização como que cristalizou aquela estrutura social que ela encontrou, sobretudo no interior”, afirma Kywal.
Com a chegada dos portugueses, vieram também os missionários, que difundiram a religião católica entre aproximadamente 80 e 90% dos habitantes e que até hoje permanece com grande força.
Na segunda metade do século XVI chegam os holandeses que, violentamente, entraram na ilha em busca do sândalo. Um acordo, firmado em 1859, terminou oficialmente com as disputas, dividindo o País entre Portugal e Holanda. A paz no Timor duraria até 1941 quando, sob o pretexto de deter os japoneses, foi invadido pelos australianos e pelos holandeses. Entre 1942 e 1945, os japoneses expulsaram os australianos e os holandeses da ilha e cometeram toda a sorte de violência contra os timorenses. Em 1975 os indonésios dominaram o Timor, que fica a 1.500 km leste de sua capital, Jacarta. Lá permanecem até 1999. Durante esse período, a língua portuguesa foi proibida e os direitos humanos foram violados de todas as maneiras. Oficialmente, entre 1975 e 1999 foram assassinados 200.000 dos 800.000 habitantes.
Os timorenses, ao que indicam as primeiras impressões, encaram a reconstrução com a esperança de quem, também, um a um, vai reerguer o seu país. Esse misto de individual e coletivo é um traço marcante. Há muito que fazer, pois a carência é generalizada. Falta tudo: água potável, energia elétrica, a higiene é precária, as casas e dependências públicas estão destruídas (todas queimadas) e a alimentação é contida, especialmente nas montanhas. As habitações são improvisadas e a população se alimenta principalmente de frutas, abundantes no litoral. A reconstrução envolve uma situação sui generis no cenário internacional. “Nunca as Nações Unidas tiveram um mandato para administrar e preparar o território para a independência, como é o caso do Timor Leste. Então temos que encarar com uma certa naturalidade as dificuldades que surgem, problemas inclusive de ordem legal que fazem com que seja demorado o dispêndio de recursos”, assegura Kywal.
O equilíbrio entre as necessidades urgentes e a visão de futuro é fundamental para viabilizar e reerguer, sob novas pilastras culturais e históricas, a pequena ilha do avô crocodilo. Isso não significa esquecer o passado, o que seria impossível. Esse aspecto parece claro para quem está à frente da transição, como é o caso do padre timorense Filomeno Jacob, ministro da educação. “O que é que nos faz ser TIMOR? É a nossa cultura, é a nossa história. E ninguém pode escapar à sua história, como ela foi. Não vamos sonhar. Os portugueses estiveram aqui a colonizar e essa colonização marcou a nossa história (...). Não podemos fazer mais nada quanto ao que aconteceu depois. A realidade é essa”.
O Programa Alfabetização Solidária
– Implantação
O interesse pelo Programa Alfabetização Solidária nasceu do encontro entre a ausência de propostas para a educação de jovens e adultos no país e o modelo que o ministro da educação encontrou no Brasil. O embaixador brasileiro lembra que “quando o Padre Filomeno Jacob visitou o Brasil e soube das possibilidades que o Programa Alfabetização Solidária estava oferecendo à população brasileira, ele imediatamente se interessou, porque percebeu que com isso estávamos cobrindo uma faixa que não tinha sido contemplada até então nos planos de educação para o Timor Leste e nisso é que eu vejo a importância do Programa, justamente cobrir aquela área que estava abandonada. Com isso nós não estamos competindo com ninguém, não estamos duplicando esforços, apenas estamos atacando um campo que não tinha sido até então coberto”.
A entrada do Programa no Timor Leste, significou um passo em direção à atuação em todas as frentes. A educação é a grande esperança de reconstruir o país. O ministro da educação tem uma ideia bastante clara a respeito: “A tarefa fundamental hoje no setor da educação não é simplesmente o que se diria no tradicional, educar, formar, oferecer uma oportunidade educacional aos jovens, garantir o futuro, garantir a nossa cultura, é mais do que tudo isso. É oferecer esperança, é oferecer um futuro, um futuro democrático, um futuro livre, imbuído de uma identidade, de uma história nossa. É um processo total, é um processo pedagógico, de formação, de educação, de capacitação das pessoas, mas isso tudo integrado numa plataforma de constituição - e eu diria mesmo de reconstituição -, porque nós vivemos uma ocupação indonésia brutal e anticultural”.
Educação e reconstrução são dois termos que não se separam na sociedade timorense. Portanto, além do valor intrínseco, há uma relação evidente entre educação e identidade cultural. Kywal acredita que a educação deve ser vista sob dois aspectos: “o primeiro é a educação pelo seu valor em si mesmo, como motor do desenvolvimento. Eu acho que todos nós já aprendemos – e, no nosso caso, a duras penas – que a educação é a base de qualquer esforço sério de desenvolvimento. Isso vale para o Brasil e vale para qualquer país do mundo. Aqui em Timor Leste não será diferente e eu acho que as próprias lideranças timorenses estão muito, muito conscientes da importância e do valor da educação como instrumento de desenvolvimento do país, especialmente por se tratar de um país pequeno, onde o investimento nas pessoas é fundamental. O segundo é um valor de afirmação da identidade nacional do Timor Leste, porque, dentro do esforço da educação, está um esforço de caracterização da identidade nacional”.
O Programa Alfabetização Solidária entrou no cenário timorense em novembro do ano 2000 com a responsabilidade de compreender o papel que a educação tem nesse país. O Programa capacitou 20 alfabetizadores e está atendendo mais de 300 alunos em 11 salas de aula e é o único programa brasileiro de educação em execução no Timor. A capacitação dos alfabetizadores foi realizada em Dili, durante 20 dias, por dois professores universitários parceiros do Programa Alfabetização Solidária no Brasil: o professor Fábio Giordano, da Universidade Santa Cecília, de Santos (SP), e a professora Antônia Píncano, da Universidade do Rio de Janeiro – UniRio (RJ). Além da capacitação, os professores acompanharam os dez primeiros dias de realização das aulas.
Essa foi a primeira etapa da atuação do Alfabetização Solidária no país, chamada de Projeto Alfabetização Comunitária. Depois disso, a proposta sairá da fase piloto e iniciará a sua expansão para outras cidades do Timor. Existe uma grande demanda à espera dessa expansão. A professora Antônia Píncano e o professor Fábio Giordano afirmam que o trabalho em Timor Leste projeta surpreendente possibilidade de ampliação, além de resultados inesperados e revelam que não há qualquer divulgação do Programa, a não ser aquela feita pelos próprios alunos.
– Infraestrutura e funcionamento
O Programa conta com dez salas de aula no país, a saber:
Dili Leste (Oriental) - Lahane Oriental, Acadiru-hun, Bemori, Bena-mauc – Becori e Inurfuic/aituri-laran
Dili Oeste (Ocidental) - Beira-mar (fatuhada), Mascarenhas, Moris Dame (manleuana), Mascarenha (balide) e Naroman.
A infraestrutura na qual se insere não pode ser diferente da precariedade e da improvisação do país. Nas palavras de Maria Angélica, alfabetizadora do Programa, “nesse momento, depois da destruição total, as escolas têm problemas graves de infraestrutura”, o que exige “um grande esforço para o desenvolvimento da alfabetização no Timor”.
Problemas de energia elétrica são comuns em todo o Timor; quando há luz, ela pode faltar a qualquer momento. As classes são caracterizadas por calor intenso, que piora com a grande procura pelos cursos. A maioria se utiliza de lampiões. É significativo o fato de, a despeito das condições, a comunidade procurar cada vez mais os cursos de alfabetização. Esse tem sido um fator preponderante para a “reconstrução dos espaços comunitários desarticulados por décadas de repressão e violência”, afirma a professora Antônia.
Os alfabetizadores foram recrutados nas comunidades a partir de uma seleção aberta, realizada por educadores brasileiros. Esse tipo de vinculação dos alfabetizadores com a comunidade assegura, a princípio, uma forte relação entre a alfabetização e a identidade cultural, necessária em todo processo pedagógico e fundamental no Timor Leste.
– O Programa na sociedade timorense
O aluno do Programa enfrenta, como a maior parte da população, dificuldades em sua sobrevivência e também tem o sonho de que a reconstrução do país, por meio de sua independência, irá trazer uma vida nova para si e para a sua comunidade. O Programa, segundo Margarida Soares, alfabetizadora, foi um meio de “fazer com que o povo saísse de si próprio para receber e fazer o novo Timor”. São jovens e adultos que, nas palavras do embaixador brasileiro, “haviam sido relegados nos planos e nas considerações sobre educação no Timor Leste”.
A maior dificuldade está, segundo os alfabetizadores, em superar os traumas deixados pela destruição. “O aluno faz parte da maioria e está com fome. Mas o pior é que eles levam, por dentro, as casas queimadas e a morte. Eles têm consciência de que precisam superar isso, mas alguns estão sem condições psicológicas de subsistência”, afirma Carolina Rangel, outra alfabetizadora do Programa.
A aceitação do Programa é grande, a começar pelo fato de trazer de volta uma língua proibida há muitos anos e que está intrinsecamente relacionada à resistência. Como consequência, temos alunos empenhados e muitas pessoas à espera do início do próximo módulo. “Pode-se confirmar o grande interesse e a perseverança”, diz Antônia. O empenho se dá pela necessidade de aprender a língua que será a oficial, mas também pela absorção inevitável que o seu significado tem para a cultura timorense. O alfabetizador José Sávio atenta para o fato de que “a finalidade do Programa não é só preparar o aluno para a educação formal, mas também para a educação informal, para a vida e para reconstruir o Timor, que foi totalmente destruído há um ano”. Esse fato talvez explique o insucesso de uma campanha de alfabetização anterior. Outro alfabetizador, Fidelino da Silva, declarou que “a comunidade teve duas tentativas de alfabetizações: a indonésia e a portuguesa. A indonésia não conseguiu alfabetizar. Agora, com o Programa, é um trabalho que exige de todos nós, é a mudança de um sistema velho para um novo. A Língua Portuguesa foi proibida muito tempo e agora é reconstrução da nação e da Língua Portuguesa. O entusiasmo da população é grande, estamos, com esse trabalho, tirando as dificuldades do nosso povo”.
Já os alunos e alfabetizadores falam com entusiasmo. Da parte dos primeiros, vê-se claramente a vontade de dominar a língua oficial, expressa em frases como a de uma aluna: “já conhecemos as primeiras letras e escrevemos e lemos alguma coisa. Esse Programa veio como um milagre”. Os alfabetizadores têm uma clareza muito grande do papel político da educação e da sua enorme responsabilidade na condução das salas de aula. Vencer as suas próprias limitações é o principal desafio, um aspecto que foi ressaltado por todos eles, sem nenhuma exceção. É bem verdade que, ao lado dessas limitações, existem problemas emergentes na vida da população, todos eles relacionados à sobrevivência imediata. O disparate entre o custo de vida e a situação dos timorenses é muito claro.
Governo e sociedade têm expectativas definidas sobre o Programa e suas funções pedagógica e social. O ministro da educação afirma que “o Programa deve realizar, em primeiro lugar, isso mesmo: alfabetização, capacidade de ler, de escrever, de falar” e completa dizendo que “o processo é crucial, porque garante a participação, através de uma língua, através de um processo de comunicação com o outro; se não se fala a língua, não se comunica e não vai poder participar e, por isso, esse projeto de alfabetização com a Alfabetização Solidária, com o Brasil, este apoio é importantíssimo, porque garante a participação democrática do nosso povo, garante a participação do nosso povo em todo o processo nacional, seja de reconstituição, seja de democratização do país, democratização das estruturas, participação política, formação pessoal e tudo isso não seria possível sem a alfabetização”.
– A Língua Portuguesa e a cultura timorense
É difícil imaginar o que representa a língua para os timorenses se nos detivermos unicamente em nossa sociedade. No Brasil, a língua portuguesa está à disposição, mesmo para os analfabetos. “Você dificilmente pode comparar uma sociedade que é razoavelmente uniforme, como é a nossa, no Brasil, onde você fala português do Oiapoque ao Chuí, em 8,5 milhões de Km2, com exceção das tribos indígenas, naturalmente. O Timor tem 35 línguas num país com a superfície do Estado de Sergipe. São realidades culturais muito diferentes. O que nós temos em comum? Nós temos em comum a Língua Portuguesa, o fato de termos sido colonizados por Portugal, termos sido parte da história portuguesa com a qual mantemos esse vínculo, mas eu acho que o grande elemento comum de todos nós é a língua. Embora aqui em Timor Leste ela não seja tão difundida quanto em outros lugares, ela é um fator de aproximação e, mais do que isso, um fator de comunicação com o resto do mundo”, alerta o embaixador brasileiro.
Cultura e língua estão articuladas de maneira inequívoca: “Assim como a língua, a cultura oferece ao indivíduo um horizonte de possibilidades latentes – uma jaula flexível e invisível dentro da qual se exercita a liberdade condicionada de cada um” . A escolha da língua portuguesa como oficial não foi um acaso. “Esta escolha tem a ver com a identidade histórica, jurídica e política do povo timorense (...) foi a colonização portuguesa que ajudou a forjar a identidade timorense. A realidade é que, etnicamente, não existe identidade timorense, porque em Timor há muitas etnias”, enfatiza o timorense ganhador do Prêmio Nobel da Paz de 1999, Dr. José Manoel de Ramos Horta . O 8º país a se utilizar do idioma tomou uma importante decisão política, que o coloca como o único país da Ásia a falar o português .
Apesar de ter sido a língua da resistência, como dizem os timorenses, apenas cerca de 20% da população compreende o português . O seu resgate também passa pelo resgate da identidade timorense. Isso, afirma o sr. Mateus dos Reis, ex-guerrilheiro que trabalha hoje no ministério da educação, “tem bases fundamentais ligadas à história, à religião, à cultura e a Língua Portuguesa foi a língua da resistência. A independência foi uma luta cultural e uma luta armada. A Língua Portuguesa apareceu há 5 séculos, ela está submetida à cultura timorense. Não podemos dividir a Língua Portuguesa e a cultura. Durante 24 anos só falávamos a Língua Portuguesa clandestinamente”
As dificuldades são muitas, considerando os anos de proibição e que o bahasa, idioma indonésio, foi ensinado nas escolas. Além disso, no cotidiano as pessoas pensam e falam em tétum, não em português. “Por isso é muito importante ter um programa aqui em Timor que traga a língua de volta ao nosso povo, porque trazendo a língua de volta, também estará a trazer uma cultura que ficou abafada por tanto tempo”, acredita Xanana Gusmão.
O embaixador brasileiro afirma que “a Língua Portuguesa é um fator de afirmação da identidade nacional. Por quê? Porque este será o único território nesta parte do mundo que falará português – e falará português em oposição a um mundo indonésio que o cerca, um mundo anglo-saxônico abaixo, formado pela Austrália e Nova Zelândia e por outros países que também falam o inglês na região, de maneira que eu já ouvi alguns timorenses dizerem que, ou bem o português se torna a língua oficial e é reintroduzido ou o Timor Leste será sufocado naturalmente pela presença de outras línguas”.
Trata-se de uma decisão, que colocará o Timor Leste numa posição única na Ásia. O embaixador completa, abordando que uma das grandes dificuldades dessa implantação é a falta de professores de português.
Xanana Gusmão concorda e acrescenta que “o desafio é introduzir o português na fala e no pensamento diário e nas comunicações informais“.
– Educação, alfabetização e cultura
A questão da identidade é o aspecto fundamental a ser tratado por qualquer programa educacional que se instale no Timor Leste. É importante enfatizar que a cultura timorense será construída pela singularidade de seu contexto e do uso do seu idioma em relação à sua posição geográfica, além do seu desenvolvimento histórico.
É preciso ressaltar quantas vezes forem necessárias que, diferente do que ocorre no Brasil, a língua portuguesa não está disponível no cotidiano, o que aparentemente tornaria o processo mais difícil. Entretanto, a língua é uma arma, um elemento fundamental de resistência num país que vence obstáculos dia a dia. Assim, como tudo, o idioma é uma conquista, está engendrado num processo maior e a seu domínio representa a independência, é parte dela. Essa conquista irá estender as possibilidades linguísticas da população, mas, sobretudo, torna-se essencial à sua extensão histórica.
O esforço timorense parece convergir para que a educação possa ser atingida em sua amplitude. De um lado, há um esforço na direção de consolidar a educação formal. O embaixador brasileiro aponta esse esforço. Segundo ele, “há em torno de 600 escolas públicas para uma população de aproximadamente 200.000 pessoas, o que dá uma média de 300 e poucos alunos por escola, que não me parece uma proporção muito má. Quer dizer, em termos de escolarização, quando houver a reabilitação das escolas, o Timor Leste terá capacidade de escolarizar praticamente toda a sua população”. O magistério já foi praticamente composto, faltando pouco para chegar ao total dos 7.000 professores previstos. “Num funcionalismo de aproximadamente 12.000 servidores, 7.000 serão professores, o que parece uma proporção mais do que equilibrada, muito boa, de professores dentro do quadro de serviço público”, pondera Kywal.
De outro lado, a estrutura se completa com a instalação da alfabetização de jovens e adultos no país, ou seja, ao mesmo tempo em que se combate o problema do analfabetismo, há um evidente esforço para conter a produção de novos analfabetos. Tudo isso é muito novo para a nascente sociedade timorense.
– O processo pedagógico
Os professores têm compromisso ou desejam tê-lo com a sua comunidade e com o seu país, mas existe uma clara limitação no que se refere à sua formação. Ao lado das limitações no trato com a língua, pode-se ver que existem outras, concernentes à prática pedagógica. A alfabetizadora Maria das Dores Guimarães relata as dificuldades: “Nós estamos tentando fazer diferente do que foi conosco, que era copiar sem pensar. É muito difícil para nós também, porque aprendemos desse jeito”.
Paralelamente, existe uma dificuldade no ato de alfabetizar, uma vez que, conforme alega uma alfabetizadora, “as pessoas querem, primeiro, falar a Língua Portuguesa, dominar a Língua Portuguesa na fala e no pensamento, para depois escreverem”.
As dificuldades aumentam quando procuramos descrever o processo pedagógico. Imaginemos o nosso analfabeto, que fala e pensa em português, embora não leia nem escreva. Pensemos nesse analfabeto sendo alfabetizado em outra língua, por exemplo, o espanhol, a partir da língua portuguesa, ou seja, o professor escreve na lousa uma palavra em português e o seu equivalente em espanhol. Acontece que o aluno não saber ler o português, mas apenas falar. O processo de aquisição da língua é duplo, portanto: um refere-se à língua portuguesa e o outro, ao espanhol. Imaginando tal situação, podemos chegar perto do inusitado processo de alfabetização do Timor Leste. O mais surpreendente, contudo, é que, com todas as restrições pedagógicas, num contexto histórico complexo e com todas as dificuldades do uso da língua portuguesa, os alunos parecem estar, de fato, aprendendo. Isso sugere que, quando a alfabetização está inserida num processo de transformação da estrutura econômica, da qual derivam as sociais, políticas e as demais que compõem o corpo social, os resultados são mais abrangentes, surpreendem e não demoram a aparecer.
O material utilizado no trabalho de alfabetização deve considerar esse contexto. Para isso, os textos e os recursos pedagógicos, levam em conta, segundo a professora Antônia Píncano e o professor Fábio Giordano, os seguintes aspectos:
- a realidade do povo de Timor;
- organização grupal para utilização de manifestações coletivas, tais como: trabalhos em equipe, reuniões sindicais, movimentos populares culturais ou reivindicatórios;
- análise das causas dos acontecimentos mostrando sua história ao longo do tempo;
- valorização da mulher pelo seu papel importante na força produtiva e por sua atuação ativa na sociedade (movimentos sindicais, populares etc);
- exploração sobre o trabalho do homem e da mulher e das crianças;
- despertar, para a reflexão, a curiosidade, a pesquisa, a leitura;
- desenvolvimento do raciocínio lógico, possibilitando a apropriação de novas informações;
- incentivo à criatividade e ao espírito crítico, propiciando análises dos fatos com base em critérios previamente estabelecidos;
- favorecimento do debate e da discussão democrática, em que diferentes opiniões possam ser analisadas e respeitadas;
- questionamento dos comportamentos (passivo, conformista e omisso);
- análise da relação entre a realidade e a fantasia.
Além do ganho imediato da alfabetização, a sociedade tem, na educação de jovens e adultos, um franco caráter multiplicador, sobretudo quando os conteúdos não são meros pretextos para o desenvolvimento da linguagem, mas se encontram repletos de significado. “Pais alfabetizados vão ajudar os seus filhos nesse processo, porque também é um processo que custa”, enfatiza o Pe. Filomeno Jacob.
– O resgate cultural
Falar em resgate cultural parece muito para a situação que encontramos. O mais correto seria talvez nos referirmos à criação de uma cultura, a partir, é evidente, de todo o processo histórico timorense, fragmentado pela sua natureza. Não se trata de esquecer o que passou. Essa é a história do Timor e a sua cultura sempre será marcada por esses acontecimentos. “Nós somos hoje um povo em crise de identidade”, afirma o ministro da educação. Essa crise deve-se a inúmeras influências, que são constitutivas, elas próprias, de uma identidade multifacetada. Ela está impregnada nas instituições, mas não escapa ao comportamento miúdo, cotidiano.
– Para além da alfabetização
O Programa Alfabetização Solidária é visto como um projeto que envolve a criação da noção de cidadania. Por isso, não basta que ele esteja no Timor Leste, mas que seja absorvido e realizado pela população.
Na vida prática, já se faz sentir a necessidade da instalação de energia elétrica. A alfabetizadora Maria Margarida Ximenes afirma que o Programa chama atenção para as condições das escolas. Em sua sala, já existe um movimento para solicitar às autoridades a instalação de eletricidade. A despeito das dificuldades, portanto, sabe-se que muitos recursos externos chegaram e a população os deseja ver revertidos em benefícios públicos.
Uma nova atitude frente à distribuição de verbas também já pode ser notada. Ainda que timidamente, as pessoas começam a ver no Programa uma instituição séria, que, como nenhum outro projeto na região, tem completa transparência no manuseio e na distribuição de verbas. Esse é um fator essencial à credibilidade do Programa e à sua completa aceitação.
A inserção da mulher na sala de aula é também um ganho. Vítimas de múltiplas formas de violência, as mulheres têm, na educação, uma poderosa arma para reconstruir, além do país, as suas vidas. “Teve muita violência contra as mulheres, de todas as formas. O Programa tem muitas mulheres e é uma forma de liberdade para nós, que queremos ajudar a construir esse país de novo”, assegura uma aluna, com lágrimas nos olhos.
O agrupamento de pessoas em torno de uma finalidade comum, a aquisição da língua portuguesa, também criam um fato novo no país. Até então, as pessoas reuniam-se para resistir. Agora, elas conhecem um outro tipo de resistência: aquele que é um chamamento à reconstrução do Timor. O Programa está atento a essas características culturais e sustenta a sua posição de referência, a fim de provocar um novo comportamento individual e coletivo que resgate, além da língua portuguesa, a valorização do ser humano. Em sociedades que passaram por traumas sucessivos, como ocorreu no Timor, a brutalização é um risco e caminha desgovernada e concomitantemente ao lado de uma romântica exaltação do “bom selvagem”. Em ambos os casos, existe o perigo de a pedagogia servir de apoio a uma visão distorcida e egocêntrica do outro. É necessária uma constante reflexão com os educadores locais a respeito de sua cultura e do papel fundamental que eles possuem na formatação de um (re) nascimento cultural.
III – REFLEXÕES FINAIS
É difícil dar conta de tantos aspectos que cercam a realidade timorense. Corre-se o risco de, ao querer apreender a realidade num lance apenas, precipitar-se em conclusões.
Algumas reflexões podem ser feitas, contudo. A primeira, é que existe um evidente clima de reconstrução e um enorme esforço de mostrar ao resto do planeta que uma nova nação irá nascer. “Estamos a revelar ao mundo que estamos nos desenvolvendo, que estamos construindo um país atual, um país novo, um povo novo”, afirma Mateus. Paradoxalmente, esse novo requisita as raízes mais remotas para poder surgir. “O que há é um novo quadro cultural, que virá pela afirmação dos valores timorenses”, crê o embaixador brasileiro. É, portanto, uma sociedade que irá se construir não negando o seu passado, mas afirmando-se nos valores culturais fixos em suas raízes, absorvendo e aprendendo, aos poucos, a conviver com a sua história recente.
Ao entrar no Timor Leste, o Programa Alfabetização Solidária lançou um importantíssimo trabalho, baseado no respeito à cultura, uma vez que os seus alfabetizadores pertencem às comunidades em que atuam, e na solidariedade em seu conceito mais amplo, que supera visões simplistas que a relacionam à caridade. “Valorizo muito esta solidariedade, porque o Timor está a precisar e isso veio de uma outra nação, que quer participar com aquela delicadeza, dando a sua colaboração e compreensão para o bem de todos”, conclui a educadora Carolina.
O Timor Leste não está desorientado, sem rumo. Isso é importante, porque o trabalho de educação deve ser necessariamente baseado em projetos consistentes, que nem por isso são inflexíveis. O fato de o Timor saber o que deseja ser e como conduzir o processo, faz do trabalho de alfabetização um suporte fundamental ao cumprimento de metas e à superação de obstáculos. “Depois de 25 anos de resistência, nós sabemos exatamente o que queremos ser. O Timor deseja ser ele mesmo, no sudoeste asiático, falando a língua portuguesa, um país diferente, um país com a sua história própria”, diz o ministro da educação. E conclui: “Nós estamos preocupados, mas não estamos perdidos. Há muita serenidade. Nós não estamos assustados”.
Renato Janine Ribeiro, diz que “... às vezes a pior tortura é ter a voz silenciada”. O Timor jamais perdeu a sua voz, embora ela tivesse sido brutalmente silenciada. O Brasil e outras nações do mundo, no entanto, ouviram, ainda que tardiamente, o desespero de um povo que lutou como pôde contra as atrocidades que o abateram. “Conviver com a diversidade é consequência do nosso grito ardente. A presença do estrangeiro, nós desejamos, porque nós gritamos para isso e fomos ouvidos, depois de 24 anos”, afirma Armindo de Jesus Barros.
Em todos os depoimentos, é forte esse sentimento do qual a língua portuguesa foi catalisadora. Não existe novo Timor sem a Língua Portuguesa. Com quase 80% de analfabetos nesse idioma, o trabalho do Programa Alfabetização Solidária é complexo. A expectativa é de que consiga ir além da alfabetização, ajudando a construir essa identidade tão perseguida durante anos pelos timorenses. Xanana Gusmão, poeta e líder, nos oferece algumas pistas: “queremos ser uma nação, uma pequenina ilha do sudoeste asiático, a única nação asiática a falar o português. Isso já é uma resistência, além daquela que tivemos que enfrentar aqui dentro do nosso país. Para isso, precisamos dos nossos irmãos portugueses e dos nossos irmãos brasileiros”. Isso também é Timor.
Cássia Janeiro