David Hume, filósofo escocês e empirista do século XVIII, estudioso da história a da política inglesa, tornou-se notório pelos conceitos que criou para compreendermos como se dá o conhecimento humano. Para ele, o conhecimento é baseado em um princípio que ele chamava de princípio da causalidade. Simplificando, nossa mente interpreta as experiências que temos a partir das memórias das experiências anteriores, ou seja, a partir de um hábito de causa e efeito. Por exemplo, se o pneu de um carro furar (efeito), imediatamente fazemos uma lista mental das múltiplas causas possíveis (prego, parafuso, defeito de fabricação, problemas com a válvula, etc.). Todas as causas são baseadas em experiências passadas de nossa memória ou da memória dos outros. Mas, igualmente, todas elas são baseadas em crença, pois todas, sem exceção, são possíveis. Para dirimir a dúvida, Hume, como bom empirista, advoga o princípio da verificação ou, no caso do pneu, verificar a causa verdadeira em um borracheiro.
Verificada a causa real, as outras elencadas são anuladas.
Em parte, com esse hábito, o conhecimento ganha um padrão para interpretar as novas experiências sem grandes sustos ou novidades. Por outro lado, esse hábito nos conduz a “acreditar” que o mesmo modelo de interpretação de uma experiência, serve para todas as experiências, o que pode, em algum momento, ser equivocado ou falso. Isso ocorre principalmente quando a nossa mente faz associações entre eventos parecidos.
Utilizando novamente o exemplo do pneu, se o furo é provocado por prego no primeiro dia, também por prego no segundo dia, no terceiro, quarto, quinto, até o décimo dia, nossa mente vai associar ou ligar um evento com o outro e, se o pneu furar de novo no décimo primeiro dia, automaticamente, interpretaremos como sendo prego mais uma vez. Porém, a verificação pode revelar que não foi prego nesse dia, mas um parafuso. Logo, a mente cria um hábito ou padrão para explicar o pneu furado que, em um determinado momento, pode não funcionar.
Com o hábito de associar eventos aparentemente semelhantes, Hume apontou como podemos nos equivocar em muitas situações. Numa situação como um pneu furado tantas vezes, nada a temer, a não ser acreditar que estamos passando por uma grande onda de azar. Mas, no caso de situações e eventos que envolvam vidas e experiências perigosas, acreditar que uma mesma causa explique o efeito atual, pode gerar um padrão que, sem verificação ou informações mais claras, invariavelmente redunda numa tragédia.
Foi o que aconteceu em julho de 2008, quando o menino João e sua mãe, dentro do carro da família, foram “metralhados” no Rio de Janeiro por policiais militares. O menino faleceu dois dias depois. Na época, o secretário de segurança do Rio, José Mariano Beltrame, chamou a operação de “desastrosa, que demonstrou falta de preparo psicológico e operacional”. A mídia fez eco e repetiu “ad nausean” (até enjoar) que a polícia estava despreparada e desprovida de treinamento adequado.
O que diria Hume diante dessa notícia? Se pusermos em prática o ceticismo saudável do escocês o que poderíamos concluir?
O que possivelmente ocorreu é que a polícia já fazia esse tipo de abordagem e, até aquele momento, estava “dando certo”. Dessa vez não deu. Diante de um Estado despreparado a polícia teve que se “reinventar” e precisou criar um padrão para enfrentar uma bandidagem preparada e organizada. Primeiro atira, depois se averigua. É uma ação baseada na crença que, por sua vez, vem da repetição, da memória de experiências anteriores. Não há verificação, não há exercício cético, de questionamento. Numa ação que exigia rapidez, se fez o que estava à mão, ou melhor, se fez a partir do que estava na cabeça. Possivelmente não foi a primeira vez que esses policiais fizeram isso. Daí que a culpa não pode recair apenas sobre eles.
Como no caso do pneu, os policiais usaram as experiências que estavam na memória, numa lembrança de repetição que criou um padrão. O que não contavam é que aquela situação específica pedia outro tipo de postura, ou seja, de dúvida e verificação. Como um borracheiro, que verifica o que furou um pneu, os policiais deveriam verificar quem eram as pessoas dentro do carro. Escolheram seguir a intuição, a crença baseada no padrão e se deram mal. Na linguagem do borracheiro, dessa vez não foi prego. Na linguagem de Hume, a causa nunca é igual.
Ora, se a repetição fez isso com os policiais, imagina com os professores. Pois é isso que deveríamos tomar cuidado. Se por um lado a repetição de padrões são importantes na aprendizagem, porque a mente segue hábitos, por outro lado, ela pode ser perigosa. Perigosa porque os alunos não só devem ser estimulados a encontrarem um padrão, um hábito para que suas mentes se adequem a conhecimentos obrigatórios e fundamentais em cada seguimento escolar, mas igualmente estimulados a pensarem por conta própria, a desconfiarem. Em resumo, o professor também deve assumir o papel de tutor cético, ou seja, motivar seus alunos à pesquisa, verificação e experimentação. Sem isso, fica complicada a aquisição de um novo conhecimento que não caia simplesmente no “hábito da mente”, que adora a decoreba e o conteudismo.
Rogério Carvalho - Assessor Pedagógico
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