Em 1637, na busca de um conhecimento verdadeiro, o francês René Descartes (1596-1650), considerado o fundador da Filosofia Moderna, publicou a obra O Discurso do Método. A autobiografia apresenta textos inquietantes, onde atribui à humanidade a capacidade de compreender o mundo e estabelecer verdades. Para Descartes, a autenticidade de determinado fato deve ser aceita somente após uma profunda análise do fato, o que requer duvidar, questionar e rejeitar o incerto, e foi assim que o filósofo cunhou a famosa sentença “Penso, logo existo”.
Em pleno século XXI, O Discurso do Método renasce, como um presente para todos àqueles seres que vivem de por quês e por ques. Bem dito seja o Zequinha, o inquieto personagem do seriado infanto-juvenil Castelo Rá-Tim-Bum. O pequenote vivia com o ponto de interrogação na cabeça (?), cheio de por quês e por ques, mas tinha à sua volta amigos menos críticos que, com tantas certezas prontas, mesmo sem cunho científico, simplesmente respondiam: “Porque sim, Zequinha”. Ah, Marcelo Tas (Marcelo Tristão Athayde de Souza), como era bom quando você entrava em cena e dizia: “Porque sim não é resposta”. E lá estava eu, em frente à TV, aprendendo a questionar, aprendendo a duvidar, aprendendo a aprender.
E hoje, você questiona seu mundo ou simplesmente aceita respostas prontas? Por quê? Por favor, porque sim não é resposta!
Confesso que me senti entristecida quando assisti à campanha publicitária da cerveja Schin, que tem como garoto propaganda o ator Selton Mello. Vestido de branco (símbolo da paz), em comemoração à virada do ano, Selton aparece na primeira cena, com uma latinha de cerveja na mão e um roteiro feito para os seres não pensantes: “Ano novo, época perfeita para a Schin lançar o movimento para quem não curte ficar dando explicação para tudo, é o movimento do Porque Sim”.
Vamos lá: Selton, você protagonizou o filme o Palhaço, uma profunda reflexão sobre a contemporaneidade e o direito à felicidade. Em uma das cenas, você se pergunta: “Eu faço o povo rir, mas quem é que vai me fazer rir?”. Um curto texto, de singular profundidade e que, para obter a resposta ou respostas, necessitamos de muitos Por quês e Por ques.
A Schin fez o seu papel, popularizar o seu produto e, de quebra, tentou minimizar as constantes críticas sobre a qualidade de sua cerveja.
Se, para compreendermos o mundo necessitamos nos “afogar” no mar das incertezas, e ir além, em busca de fatos comprovados de forma sistêmica e racional, então precisamos refletir sobre o nosso papel na sociedade atual. Afinal, as tecnologias modernas, principalmente aquelas ligada à informação e comunicação, permitem o rápido acesso a diversos canais que, semelhantes a oráculos, têm respostas para tudo, ou quase tudo. São bilhões de pontos de vistas, e “cada ponto de vista é a vista de um ponto”.
Para se ter uma ideia, seja o que ocorre na internet em apenas um minuto:
Ao ler o texto acima, algumas pessoas dirão: “na minha época, eu tinha de pesquisar na biblioteca, passava horas e horas por lá, não era tudo fácil assim; hoje, está tudo pronto, é só copiar e colar, por isso os jovens não são críticos.”.
É interessante perceber o quanto algumas questões são simplesmente levadas para o senso comum. Caro leitor, na sua época, você passava sim horas e horas na biblioteca; à mesa em que você estava tinha livros, lápis, borracha, caneta, um caderno ou, para adiantar o trabalho, uma folha de almaço. Para que...? Não raro, para copiar. Pergunto: quantos livros você tinha à disposição? Quantos autores? Qual a data da publicação mais recente?
Hoje, nós temos acesso aos mais recentes artigos, livros, áudios, vídeos e sites para o compartilhamento de saberes, tudo à distância de alguns cliques. Mas, retomo a pergunta: onde mora a sua criticidade?
Vivemos um tempo em que a humanidade tem a seu dispor recursos para divulgar, compartilhar, empreender. Este é o novo mundo, interligado por fios, cabos, redes wi-fi, conectado por bilhões de computadores, smartphones, tablets. Você, eu, nossos amigos e parentes, não são mais meros espectadores passivos, simples leitores que consomem informações e, não raro, no universo escolar, obrigados a memorizar ideias de terceiros, sem ao menos ter o simples direito à crítica.
Pare um instante, acesse o seu Facebook, seu Linkedin, seu Twitter, seu WhatsApp. Quantos textos, quantos por quês e por ques você encontra nas interligações com seus amigos virtuais? Quantos compartilhar, quantos curtir? Aliás, basta publicarmos algo que já aguardamos ansiosos o aviso sonoro de nossos smartphones, e nos perguntamos: “Será que alguém já curtiu? Será que alguém compartilhou?”.
Bem-vinda e bem-vindo a Era do compartilhar, a Era da autoria.
Descartes, para compreender o mundo à sua volta, deixou a escola, pois naquele universo não existia espaço para questionamentos e reflexões. O contato com as pessoas e suas verdades, foi fundamental para divulgar suas teorias e apresentar os textos de O Discurso do Método. Hoje, o mundo apequenou-se e as viagens de Descartes poderiam ser realizadas em sua própria residência, navegando pela web, ou se preferir, em qualquer outro local, pelo seu dispositivo móvel.
O livro Cibercultura, escrito pelo professor e filósofo Pierry Lévy, traz importantes argumentos a respeito da web e seu papel social e educativo. Segundo Lévy:
“O que é preciso aprender não pode mais ser planejado nem precisamente definido com antecedência. [...] agora devemos preferir a imagem em espaços de conhecimentos emergentes, abertos, contínuos, em fluxo, não lineares, se reorganizando de acordo com os objetivos ou os contextos, nos quais cada um ocupa posição singular e evolutiva.” (LÉVY, 1999, p. 158).
Assim, a web fortalece o diálogo, a troca entre os pares e entre pessoas não conhecidas. É possível criar, recriar, criticar, divulgar, conhecer, reformular. E, segundo Levy, não há linearidade nesta corrente de saberes, as pessoas ocupam seus espaços, de acordo com suas preferências.
Onde mora a sua criticidade? Está dentro de você, na sua capacidade de questionar suas verdades, quando analisa e questiona; está fora de você, quando busca alternativas, quando percorre novos caminhos, quando conhece gente, de preferência, fora do seu contexto, fora do seu universo.
Se eu pudesse, somente em meus fantasiosos sonhos, teria os mesmos poderes do protagonista do seriado americano Pushing Daisies. O Jovem Ned tem o dom de trazer os mortos de volta à vida. Eu, devolveria à vida, Descartes (não me pergunte como acharia seus restos mortais). Mostraria a ele este novo mundo e perguntaria: “Quer se cadastrar nas redes sociais midiáticas? Aceita compartilhar seus saberes?”. Adoraria receber como resposta: “Compartilho, logo existo”.
Cíntia Acioli
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